O ano era 1971. O mundo acabava de ser dividido em três grandes blocos: o ocidental, o oriental comunista e um terceiro denominado “neutro”.
A Europa, o berço da humanidade, vivia uma forte depressão industrial com o aumento de empregados no setor de serviços, fruto do pós-guerra que se estendeu de 1960 a 1980.
Os Estados Unidos, por sua vez, viam seus subúrbios crescerem rapidamente e a febre pelos bens de consumo fazia a economia se desequilibrar uma vez que os estadunidenses gastavam seu lucro em vez de reaplicá-lo.
Na América Latina, a eleição de Salvador Allende, em 1970, no Chile, poderia significar o retorno de um governo marxista mostrando que uma mudança social poderia ser obtida por meios constitucionais, entretanto esse fato gerava mais pânico do que conforto em muitos outros países, e um golpe já estava sendo planejado.
Nesse mesmo período, o Brasil vivenciava os “anos de chumbo” (1968-1974), do governo Emílio Garrastazu Médici, o período mais violento da ditadura militar brasileira (1964-1984).
A luta política travada, com suas prisões abusivas e centenas de mortes (segundo a Comissão da Verdade, foram 432 pessoas entre mortos e desaparecidos), se intensificava nos grandes centros brasileiros, onde havia severa censura às artes, mas especialmente contra a imprensa.
Em Jales, os moradores já conheciam de perto a repressão porque tinham vivenciado a prisão arbitrária do advogado Roberto Rollemberg. Entretanto, a imprensa local era um pouco mais livre devido à posição geográfica distante aproximadamente 600 quilômetros da capital.
Talvez o motivo principal que afastou a censura dos veículos de comunicação no interior tenha sido o fato de a mídia regional praticar o “civic journalism”, expressão em inglês sem tradução específica para o português, mas que pode ser entendido como jornalismo-cidadão, um modelo centrado nas necessidades locais e regionais.
Foi nesse cenário que nasceu o Jornal de Jales.
HISTÓRIAS
O Projeto MEMÓRIA, em seus fascículos 20, 21 e 22, publicados em setembro, outubro e novembro de 1996, respectivamente, contam que o Jornal de Jales foi fundado por um professor, Francisco Melfi, e um bancário, José Roberto Moreira, ambos de Mirassol, em 10 de outubro de 1971. Dois anos antes, em 1969, eles haviam implantado O Jornal, em Santa Fé do Sul, e a Mimasp, uma empresa para gerenciar veículos de comunicação.
Em 1971, Jales completava 30 anos. O prefeito era o médico Edson de Freitas. O município era considerado próspero, por isso Chico Melfi e Zeca Moreira decidiram expandir suas atividades e montar um jornal na cidade.
Quando foram pesquisar o mercado local, descobriram que já existia um jornal, mas fechado, chamado Folha da Região, que pertencia a um radialista. Procuraram pelo proprietário, fecharam o negócio e mudaram o nome para Jornal de Jales.
RESPALDO
Quando o Jornal de Jales começou, o prefeito deu todo o apoio possível ao novo empreendimento porque era um político habilidoso e competente, e entendeu a importância de apoiar um veículo de comunicação. Mas isso não significou um vínculo entre o jornal e a prefeitura. Segundo os fundadores do JJ, sempre houve uma relação de independência por parte do jornal.
Claro que existiram outras administrações municipais que consideraram o Jornal de Jales como um veículo de oposição, mas segundo Chico Melfi, o jornal fazia as críticas necessárias respeitosamente e as divergências ideológicas, políticas ou administrativas eram sempre tratadas com bastante respeito, não tinha espaço nem para a baixaria nem para a agressão gratuita.
Na entrevista de Chico Melfi para o Projeto MEMÓRIA, ele afirma que o Jornal de Jales sempre foi visto como um instrumento poderoso a serviço do progresso e do desenvolvimento do município. O veículo de comunicação sempre lutou pelo crescimento da cidade levando em conta, também, a visão regional.
JORNALISMO CIDADÃO
Para se ter uma ideia de como isso acontecia, é importante destacar o que dizia o primeiro editorial do JJ. Ele afirmava que o veículo nascia para lutar pelo desenvolvimento da cidade e, para isso, contaria com a ajuda da população no levantamento das questões importantes que precisariam ser discutidas com os governantes para ações que resultassem em medidas concretas de melhoria da sociedade jalesense e da região.
O assunto em destaque da primeira edição, por exemplo, foi um texto escrito pelo próprio Chico Melfi abordando a necessidade do lançamento de uma campanha em prol da construção de uma ponte sobre o Rio Paraná interligando diretamente os estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Goiás, e indiretamente os estados de Minas Gerais e Mato Grosso.
Pela possibilidade de desenvolvimento econômico e social de Jales e região, essa causa foi abraçada pelo JJ ao longo de quase 30 anos, tempo que demorou para a ideia se transformar em obra. Em todo esse período, o assunto foi pauta permanente desde a primeira edição, em 1971, até a inauguração da ponte rodoferroviária sobre o Rio Paraná, em 29 de maio de 1998.
Na verdade, o que o Jornal de Jales acabou fazendo foi a cobertura completa de um sonho do engenheiro e escritor Euclides da Cunha, exposto no livro “Contrastes e Confrontos”, publicado em 1907, até a concretização da obra, tudo isso com notícias, reportagens, editoriais e artigos escritos por jornalistas, por especialistas e até mesmo por cidadãos comuns, porque o JJ sempre esteve aberto à população.
Outras bandeiras importantes desfraldadas pelo jornal foram as lutas pelo Centro Cultural, pelo Teatro Municipal, pela diversificação agrícola do município, entre outros. Dessa forma, abordando causas que melhorariam a qualidade de vida dos jalesenses e da região é que o jornalismo-cidadão se fez presente nas edições do JJ.
Para ficar mais claro, esse modelo de jornalismo cidadão se caracteriza pela existência e manutenção de um vínculo social entre o veículo de comunicação e seus leitores, tematizando os problemas de uma comunidade para que seus moradores sejam capazes de resolvê-los.
Um estudo mais detalhado do tema pode ser encontrado na minha dissertação de mestrado “O civic journalism como estratégia comunicacional nos veículos de comunicação do interior de São Paulo: o caso do Jornal de Jales” feita para o programa de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
NOVA FASE
Quando Zeca Moreira precisou voltar a Mirassol para assumir a indústria de móveis da família, Chico Melfi viu-se sozinho tendo que enfrentar um concorrente, a Folha do Oeste, do empresário das telecomunicações, Francisco Viana. A disputa era desigual: um jornal semanal na linotipadora em preto e branco versus um jornal diário, colorido, em off set, com sucursais em toda a região.
Em 1980, Chico Melfi também precisou se afastar do Jornal de Jales para assumir negócios de família. Foi quando ele vendeu o jornal para o jornalista Deonel Rosa Júnior, radialista, locutor e ex-editor do concorrente Folha da Região.
Mas antes de trabalhar na Folha da Região, Deonel havia sido responsável, como colaborador, por anos, pela coluna Contexto, de análise política, do JJ. Era, segundo Chico Melfi, a pessoa mais qualificada para ficar com o jornal pela competência e seriedade.
Deonel comprou o Jornal de Jales com um empréstimo de banco a ser pago em 90 dias. Por isso, assumiu todas as funções da empresa jornalística. Era repórter, redator, revisor, editor, agente de publicidade. Só não entregava o jornal. Ele costumava dizer que foram tempos interessantes e heroicos de muitas madrugadas acordadas. Mas ele conseguiu pagar a dívida na véspera do vencimento.
PROEZAS
Das proezas que ele se gabava na direção do Jornal de Jales era de não depender de verbas de prefeituras (algo comum na imprensa interiorana), de ter independência editorial e credibilidade em todos os setores.
Sobre linha editorial ainda, ele argumentava que o fato de o JJ defender candidaturas únicas para que Jales tivesse representatividade política nos cenários estadual, na Assembleia Legislativa, e federal, no Congresso, se justificava pelo trabalho realizado pelos políticos Roberto Valle Rollemberg e Osvaldo de Carvalho.
Durante os 12 anos que a cidade teve esses representantes nas altas esferas de governo, Jales ganhou, entre outros, a gerência divisional da Sabesp, o ERI – Escritório Regional do Interior, o Escritório Regional de Saúde, e o CEFAM – Centro Específico de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério.
Foi, também, por intervenção de políticos locais que a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jales não foi fechada após intervenção do MEC, em um passado agora distante.
DESABAFO
Não foi por acaso que o próprio Deonel escreveu, no texto de comemoração dos 47 anos do Jornal de Jales, que não tinha sido fácil chegar até aquele momento. “Desde a primeira edição, em outubro de 1971, o país, a região e a cidade passaram por grandes transformações, inclusive (e principalmente) de ordem econômica.
Gigantes do jornalismo brasileiro sucumbiram… Assim, manter de pé, durante 47 anos, um jornal semanário sem vinculação com o poder público, partidos ou grupos econômicos, exigiu da direção um exercício permanente de resistência para superar as pedras no caminho”.
Deonel continuou: “Como ninguém atinge esta marca por acaso, talvez valha a pena refletir sobre os motivos que garantem a longevidade do JJ. Em primeiro lugar, o pluralismo. Desde que foi fundado, o jornal nunca se tornou refém de quem quer que seja, abrindo suas páginas a todas as correntes de pensamento e fomentando a discussão dos problemas e soluções que contemplassem o interesse público acima de tudo.
Paralelamente, o JJ nunca quis competir com a chamada grande imprensa. Ao contrário, preferiu investir no debate da realidade local e regional, convicto de que, como escreveu Tolstoi, “conhece a tua aldeia e sê universal”.
Lutas como a da construção da ponte rodoferroviária sobre o rio Paraná, a diversificação agrícola, a eletrificação rural, o saneamento básico, a representatividade política, o incentivo à cultura, o estímulo ao esporte, as parcerias com escolas da rede estadual e faculdades, entre outras, podem ser creditadas na conta corrente do trabalho realizado.
O jornal também sempre se preocupou com a preservação da memória da cidade, investindo em iniciativas como, por exemplo, o Projeto MEMÓRIA, uma coletânea de fascículos mensais contando a história de Jales através de depoimentos de pessoas vivas.
A série “Acorda, Jales”, título de 12 editoriais publicados na capa do jornal, em 1998, acabou gerando o Fórum da Cidadania, uma instância comunitária formada por entidades de classe, associações profissionais, clubes de serviço e instituições filosóficas.
Porém, de nada adiantaria tanto esforço se não houvesse o apoio irrestrito de assinantes, leitores e anunciantes, os sustentáculos desta jornada. Manter o JJ com esta linha editorial é o desafio permanente.”
NOVOS DESAFIOS
Aquele periódico semanal, que sempre circulou aos domingos pela manhã desde outubro de 1971, impresso em papel jornal, no formato standard, chega hoje, em outubro de 2024, aos 53 anos ainda disposto a ajudar no desenvolvimento da cidade e de toda a região.
Os desafios enfrentados por Chico Melfi, Zeca Moreira e Deonel Rosa Junior são os mesmos que vem sendo enfrentado pelos seus sucessores. A diferença é que agora, o Jornal de Jales é um bem imaterial da cidade.
Bem imaterial é tudo aquilo que é importante para a cultura de um povo. Portanto, não faz sentido pensar em Jales sem o Jornal de Jales, que pode, a partir de agora, se desdobrar em vários formatos hoje, inclusive o digital.
Que os próximos anos possam ser ainda mais desafiadores (porque ninguém cresce na zona de conforto). Que os sucessores de Chico Melfi, Zeca Moreira e Deonel Rosa Júnior entendam a grandiosidade do Jornal de Jales e do jornalismo cidadão. São meus votos pelos 53 anos de muita luta!
AYNE REGINA GONÇALVES SALVIANO
Jornalista. Foi editora do Jornal de Jales entre 1990-1991. Foi co-criadora e editora do Projeto Memória, série de fascículos que ajudaram no resgate da história da cidade. É a organizadora do livro-homenagem para Deonel Rosa Júnior.