Giana Rodrigues
Nascida e criada em Jales, Flora Dias está em plena fase de divulgação do filme brasileiro que escreveu e dirigiu: “O Estranho”, que estreia nos cinemas no próximo dia 20 de junho.
Filha de Saulo Nunes da Silva, publicitário, e Silvia Helena Souza Dias, administradora, Flora nasceu em Jales em 1985, onde morou até os 16 anos com os pais e os irmãos: “tenho uma relação profunda com a cidade onde nasci e também com a região, sempre estivemos em Rubinéia e Santa Fé do Sul, e tenho um amor e uma proximidade muito grande com o Rio Paraná”, contou com exclusividade ao Jornal de Jales.
Formada em Cinema pela UFF (Brasil) e pela École Nationale Louis Lumière (França), Flora já trabalhou em diversos longas e curta-metragens, e a produção que estreia na próxima semana é da Lira Cinematográfica e Enquadramento Produções, em coprodução com a francesa Pomme Hurlante Films e as brasileiras Filmes de Abril e Ipê Branco Filmes. A distribuição é da Embaúba Filmes.
PREMIADO
O filme fez uma bela trajetória em festivais, tendo ganhado os prêmios de Melhor Filme no Queer Lisboa (Portugal) e no Festival Internacional de Direitos Humanos de Nuremberg (Alemanha), além de Melhor Som no Festival de Havana (Cuba) e de Melhor Fotografia e Melhor Som em sua estreia nacional no Olhar de Cinema, em Curitiba.
Em entrevista Flora conta sobre a inspiração para o longa-metragem e relata as principais dificuldades vividas pelo cinema brasileiro nas últimas décadas.
(GR)
J.J. – O que o filme “O Estranho” traz de referências da sua vida e história?
Flora – O Estranho é uma maneira de falar sobre as coisas que são importantes na minha vida. Tem várias coisas que coincidem aí, primeiro a questão do território de Guarulhos, a violência da expansão do capital sobre a história e a memória, sobre um rio, sobre árvores, sobre a casa de animais e pessoas; as pessoas foram removidas, os animais foram expulsos, um rio foi desviado e outro foi soterrado, e as árvores foram cortadas. Isso por exemplo é algo que eu temo há muitos anos, que aconteça com a beira do rio Paraná, aí do lado de Jales. É algo que eu vivo quando eu percebo um loteamento novo que derruba uma árvore, destrói uma matinha, que seca uma nascente. Aqui na capital, esse movimento já é muito maior e muito mais agressivo, mas ele já acontece em menor escala no interior. Eu gostaria de não ver a contaminação irreversível do rio Paraná, e que meus descendentes também possam conhecer o rio saudável. Já não basta as hidrelétricas terem mudado o curso do rio em anos anteriores, agora o desmatamento até a beira do rio, a contaminação de pequenas indústrias ou da criação de peixes. Isso tudo pode se intensificar se as mesmas empresas que estão na capital forem chegando cada vez mais pro interior. Então o filme fala sobre isso porque isso é uma coisa importante pra mim, porque eu tenho um apego e uma conexão profunda com o território de onde eu vim. Outra coisa importante do filme que é um paralelo comigo e com minha vida, é essa personagem principal, a Alê, que está buscando fazer uma retomada da história da própria família, que é indígena. Isso é minha história também, é a história do meu pai, do meu avô e seus ancestrais. A minha família que migrou pro interior justamente fugindo de uma situação de precariedade no aldeamento onde viveu. Isso que a Alê faz de buscar a própria origem, de pensar sobre a mãe e sobre suas origens indígenas, é um movimento que eu também faço com a minha família e que trago esse espelhamento no filme.
J.J. – A data de estreia do filme, no dia 20, um dia depois do Dia do Cinema Brasileiro, foi proposital?
Flora – A data de estreia foi uma coincidência. O cinema brasileiro ainda tem uma janela muito estreita de distribuição nas salas de cinemas comercias e temos uma produção considerada grande, então temos que conciliar com datas que não coincidam tanto, a agenda da distribuidora que está lançando quase dois filmes por mês neste ano, as agendas dos filmes hollywoodianos, isso pra gente não perder o pouco público que o cinema nacional geralmente tem. Essa é uma luta que a gente que trabalha com cinema trava há muitos anos, que o público vá ao cinema ver os filmes que são produzidos aqui e que falam da nossa realidade, e não de algo que a gente nunca vai viver.
J.J. – Como é trabalhar com o cinema brasileiro atualmente?
Flora – Trabalhar com cinema no Brasil não é fácil, a gente teve um desmonte de políticas públicas e uma consequente concentração de rendas desde o golpe do governo Dilma em 2016. Michel Temer começou logo que assumiu a fazer o desmonte de alguns programas muito importantes. O cinema brasileiro sempre teve acordos internacionais com fundos muito importantes e um deles por exemplo é o Ibermidea, que é um fundo Ibero-americano. O Brasil sempre contribuiu com esse fundo para que pudessem ser produzidos filmes brasileiros através desse fundo internacional. Então o Michel Temer já parou de contribuir e o Brasil deixou de ter acesso e fazer parte dessa comunidade internacional. O Brasil segue sendo contemplado mas os valores são diferentes, para estados que contribuem ou não. Isso só para dar um exemplo.
J.J. – Quanto tempo demorou toda a produção do longa-metragem?
Flora – No governo Bolsonaro vários projetos que já haviam ganhado um edital, que já tinham dinheiro implicado, começaram a ser represados e não receberam seus dinheiros por muito tempo. Meu filme foi um desses casos. A gente chamada de bolsão do BNDES, bolsão do FSA – o nosso fundo do audiovisual. E aí teve que haver uma ação do TCU que obrigou que o BNDES liberasse esse dinheiro para que essas produções pudessem acontecer. Alguns projetos que tinham que acontecer, pelo regulamento do edital, em um ano, não conseguiam porque essa verba estava presa, e esse foi o caso de várias produções. Foram várias que ficaram nessa situação por uma ação do governo Bolsonaro, nosso filme ficou dois anos para receber e só recebeu porque estava no montante que o TCU reivindicou que fossem pagos. E aí começou um desmonte de várias linhas de fomento que pulverizavam a nossa produção e começou a ser priorizado linhas de alta concentração de renda – poucos editais, para determinadas produções, para determinadas produtoras, que tem uma pontuação e que ganha muito dinheiro. Tudo isso foi uma asfixia para as pequenas e médias produtoras e uma concentração de renda gigantesca para grandes produtoras e consequentemente uma população do audiovisual que ficou sem emprego.
J.J. – Como você vê a necessidade de normatização para o streaming?
Flora – A regulação dos streamings está sendo debatida agora pelos nossos legisladores por uma pressão, estamos tentando fazer com que os streamings paguem um imposto que vá para um fundo setorial e ele possa fomentar a produção independente. Isso tudo está num debate muito grande porque não há interesse das empresas internacionais de gastar algo para reverter pro Brasil. Trabalhar com o cinema brasileiro é uma batalha contra grandes titãs, mas é uma batalha que está valendo a pena. Nós trabalhadores do audiovisual estamos com muita coragem para retomar um cenário que seja mais justo. Não tem que tentar imitar os produtos que chegam de fora, não é sobre isso, temos que fazer aquilo que achamos que vai fazer a sociedade se compreender e crescer, acho que essa é a função da cultura. Que ela se alimente da sociedade e vice versa. E tudo isso só é capaz através de políticas públicas e que as outras pessoas, que não são trabalhadores da cultura, também estejam engajados nessa disputa.
J.J. – E que considerações a mais faria para incentivar o público a assistir?
Flora – Tem várias coisas que sou muito orgulhosa desse filme. Primeiro como a gente conseguiu, eu e o Jurana Mallon, que é meu co-roteirista e co-diretor, que Guarulhos estivesse no filme com toda a sua complexidade e fazendo isso de uma maneira próxima ali com a comunidade guarulhense, sem impor e sem chegar de uma forma tão estrangeira. Então temos os trabalhadores do aeroporto que estão envolvidos na produção, a aldeia Filhos dessa Terra, o terreiro que também está envolvido na feitura do filme. A gente tem um retrato que me deixa muito feliz, muitas pessoas que assistem o filme dizem: nunca imaginei que Guarulhos tivesse tanta coisa, que fosse tudo aquilo, e isso é muito importante pra mim. Quando a gente consegue enxergar com outra lente o mundo em volta da gente, através das violências coloniais e do capital, a gente consegue enxergar as essências e histórias de um lugar, e isso é muito gratificante.
J.J. – Como foi a forma de produção do filme?
Flora – Fizemos tudo com uma equipe muito pequena e que se infiltrou nesses espaços, por exemplo no aeroporto. E isso é um modelo de filmar que a gente fez e que deu certo, ter tido uma estreia fora do país e ter ganhado vários prêmios, isso é um reconhecimento de que podemos continuar fazendo desta forma alternativa que a gente acredita e que esse modo de fazer filme tem seu espaço e seu público. Isso dá muito orgulho também.