Os indicadores não são nada positivos quando se trata da evolução em relação aos preconceitos contra a mulher. Isso não acontece só em Jales ou no Brasil, mas continua sendo uma tendência em nível mundial como aponta o Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento (PNUD). Para saber um pouco o que vem acontecendo o Jornal de Jales ouviu uma autoridade no assunto. A delegada de Defesa da Mulher em Jales, Mariana Alves do Nascimento é graduada em Direito e Psicologia pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus e pós-graduada em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global, pela PUCRS e comenta, nesta entrevista, como está a situação. (Luiz Ramires)
Jornal de Jales – Uma recente pesquisa realizada para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento apontou que no Brasil 84,5% das pessoas têm pelo menos um tipo de preconceito contra a mulher. Como a senhora pode explicar esses resultados?
Dra. Mariana – A despeito de estarmos em pleno século 21 e existir uma série de políticas públicas e leis para se garantir a igualdade entre homens e mulheres, os dados dessa pesquisa nos mostram que o preconceito contra a mulher é algo ainda vivo em nossa sociedade, está acontecendo e não ficou no passado. Está arraigado no pensamento de nossa sociedade e precisa, urgentemente, ser descontruído. E é justamente pela existência desse tipo de pensamento que muitas mulheres recebem salários menores, sofrem violência doméstica e são assediadas.
Jornal de Jales – Em sua opinião, quais os motivos desse preconceito estar presente até os dias atuais?
Dra. Mariana – A desigualdade de gênero é algo que vem sendo consolidado há anos, ao longo da história da humanidade. O preconceito neste caso encontra suas raízes nas diferenças culturais atribuídas a homens e mulheres, as quais estabelecem expectativas de comportamento para cada um. Em um passado recente o papel social da mulher estava apenas voltado para o lar, a família e a criação dos filhos. Muitos espaços eram entendidos como exclusivos do masculino e as mulheres não podiam ali estar. Exemplos disso não faltam: apenas em 1879 as mulheres foram autorizadas a frequentar universidades e somente em 1932 puderam exercer o direito de voto. Assim, embora tenham ocorrido avanços, esses não foram suficientes para a desconstrução da ideia de menos valia da mulher.
Jornal de Jales – A senhora acredita que levará muito tempo para se romper com o preconceito contra a mulher?
Dra. Mariana – Infelizmente o prognóstico que temos é de que não será um tempo curto. Recentemente o Secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, declarou que se estima que a igualdade entre os gêneros será atingida somente daqui a 300 anos. Ainda, segundo a ONU há alguns indicadores de retrocessos, principalmente após a pandemia de COVID-19 e guerras ocorridas pelo mundo.
Jornal de Jales – Segundo a pesquisa, uma grande porcentagem de pessoas acredita que os homens são melhores do que as mulheres em algumas atividades, por exemplo, na política. Como a senhora interpreta esse dado?
Dra. Mariana – É esse tipo de pensamento que faz com que as mulheres encontrem mais obstáculos para alcançar espaços desejados, tais como cargos políticos, chefias de empresas ou instituições, além do que, fundamenta a existência de uma diferença salarial existente entre homens e mulheres que ocupam a mesma função. Há um pensamento enraizado de que somos menos aptas e uma necessidade constante de legitimar nossas conquistas. Um grande exemplo disso são os dados do Tribunal Superior Eleitoral, que indicam que somos mais da metade do eleitorado nacional, mas mesmo assim a candidatura de mulheres atinge apenas 33% das candidaturas em geral e somos apenas 15% de eleitas, um número muito aquém do ideal e de nossa real representatividade social.
Jornal de Jales – Esse preconceito existente contra a mulher fundamenta atos de violência?
Dra. Mariana – Qualquer ato fundado em preconceito contra a mulher é um ato de violência. Quando falamos de violência contra a mulher, a primeira coisa que vem à mente são os crimes cometidos contra a mulher, mas é preciso ir além. A violência não é só aquilo que está definido na lei como crime; também são atos violentos a piada sexista, a tentativa de manipulação ou até mesmo a diferença salarial. Tais condutas não são crimes e, portanto, não serão objeto de repreensão por parte do Estado. Mas é preciso refletir que geram consequências das mais diversas ordens para as mulheres, que se sentem não compreendidas e desrespeitadas, o que pode até levar a questões de cunho psicológico, além de, claro, fomentar práticas mais graves.
Jornal de Jales – Essas práticas mais graves seriam os crimes contra as mulheres?
Dra. Mariana – Sim. Uma determinada conduta só passa a ser objeto de regramento pelo Direito Penal e, portanto, crime, quando as outras formas de solução social da questão falharam. Se temos a criação de tipos penais que protegem a mulher é porque a sociedade não conseguiu evitar a ocorrência desse tipo de comportamento de outra forma. Um exemplo disso é a criação dos crimes de violência psicológica contra a mulher e o “stalking”.
Jornal de Jales – O que seriam esses crimes?
Dra. Mariana – O crime de violência psicológica ocorre quando há dano emocional à mulher ou ela tem diminuída sua autoestima ou prejudicado seu pleno desenvolvimento. E pode ocorrer de várias formas, tais como controle de ações, comportamentos e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, isolamento, chantagem. Também quando há limitação do direito de ir e vir ou qualquer outra forma que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação. Já o “stalking” é a perseguição reiterada de alguém por qualquer meio, seja lhe ameaçando a integridade física ou psicológica ou restringindo-lhe a capacidade de locomoção, além de também ocorrer quando alguém invade ou perturba a esfera de liberdade ou privacidade da vítima.
Jornal de Jales – Os crimes ocorridos em âmbito doméstico e familiar também são influenciados pelo preconceito existente na sociedade?
Dra. Mariana – A família é reflexo da sociedade. Se a sociedade está composta por questões preconceituosas contra a mulher, isso também pode ocorrer no ambiente familiar. A mulher aprende desde menina que precisa ter uma personalidade mais adaptativa e é a responsável pelo equilíbrio emocional da casa. Mas quando algo vai mal no relacionamento e isso acaba sendo levantado, quando a mulher decide romper a relação, o fato não é bem aceito. Estudo realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicado no anuário de 2022 nos traz a informação de que é justamente quando as mulheres tentam romper as estruturas do patriarcado e os papéis sociais de gênero, especialmente quando tentam romper relacionamentos com estruturas sexistas, que elas se tornam mais vulneráveis, o que alavanca situações de violência.
Jornal de Jales – De acordo com a pesquisa, o Brasil ganhou sua pior avaliação no quesito violência física. O que se pode falar sobre isso?
Dra. Mariana – A violência física contra a mulher é aquela que, na maioria dos casos, é visível, pois deixa marcas. Consiste em condutas que de qualquer forma atinjam a integridade física ou a saúde corporal da mulher e pode ocorrer através de tapas, socos, chutes, arranhões, espancamentos etc. Mas é importante se mencionar que não se pode hierarquizar uma forma de violência como mais ou menos graves. Todas são graves e devem ser combatidas da mesma forma. A violência contra a mulher, especialmente aquelas que ocorrem dentro de um relacionamento íntimo ou familiar, é algo gradual. Não começa com a agressão física, mas sim com ofensas verbais, empurrões, o que pode até evoluir para ameaças. Assim, é de extrema importância que a mulher preste muita atenção sobre o que está ocorrendo em seu relacionamento e nunca subestime as demais formas de violência.
Jornal de Jales – E como são os índices dos registros dos tipos de violência contra a mulher em Jales?
Dra. Mariana – Em Jales os crimes mais usuais e rotineiros de registro são a ameaça, a injúria e a lesão corporal, estas no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher. São os que mais são relatados quando as vítimas comparecem na delegacia para elaboração do boletim de ocorrência. Mas isso não significa que não tenhamos o registro de outras modalidades delitivas, tais como o “stalking”, crimes sexuais e a violência psicológica.
Jornal de Jales – Na sua opinião, quais as formas de se combater o preconceito contra a mulher e como consequência, a violência?
Dra. Mariana – Grandes avanços já ocorreram em nosso país. Nossa lei de combate à violência contra a mulher – Lei Maria da Penha – é considerada uma das melhores do mundo, mas não foi suficiente. No meu ver, é necessário ampliar a informação sobre o tema e implementar nos diversos espaços sociais o diálogo da questão, o que vai proporcionar maior visibilidade e conscientização.