• Renata Baptista (G1 — São Paulo)

Tudo parecia ir na contramão aos seus sonhos: o preconceito, as estatísticas, o medo… Mas nada disso conseguiu frear Márcia Dailyn, que há 26 anos se tornou a primeira bailarina trans do tradicional Theatro Municipal de São Paulo.
Influenciada pela mãe, Selma, ex-professora de aeróbica, quando criança Márcia se encantou pelo mundo das artes e da dança. O pai, o eletricista Lau, no entanto, não conseguiu entender tudo que acontecia.
“Eu nunca tive dúvidas que era menina, desde criancinha. Minha mãe percebeu logo, e me puxou para uma conversa quando eu tinha 11 anos. Mãe é mãe, não é? Mas meu pai…”, conta, com lágrimas nos olhos. “Ele brigou com a minha mãe, se separaram. Jogou a culpa nela, como se ela tivesse me educado errado. E ficamos afastados um bom tempo”, completa.
Com o tempo, a cidade de Jales – que fica a mais de 580 quilômetros de São Paulo – ficou pequena para as ambições de Márcia. Ao ver um anúncio de rodapé em uma revista sobre dança, resolveu se inscrever para participar da seleção para a então Escola Municipal de Bailado, do Theatro Municipal, que em 2011 passou a se chamar Escola de Dança de São Paulo.
Ela foi chamada para a audição e não pensou duas vezes antes de enfrentar a viagem de quase nove horas em um ônibus para a capital. Tinha apenas 17 anos quando respondeu para Lúcia Camargo, que era a diretora do corpo de balé, qual era seu objetivo ali:

“Quero ser artista e ser respeitada”

Aprovada, sem nem direito saber onde iria morar na cidade grande, ela foi apresentada para os colegas de aula dois dias depois pela diretora: “Esta é Márcia, nossa bailarina”.
Mas ali, nem tudo foram flores. “Tive muitos professores, coreógrafos, que me tiraram da sala de aula. Não quiseram me dar aula nem me coreografar porque sou transexual. Mas eu estava sempre ali, impecável, pronta para aprender. Digna. Claro que às vezes me acompanhava um chorinho embargado”, confessa.
Em sua trajetória, Márcia diz que precisou pisar em muitas pedras. “Pedras que machucam. Mas pedras podem virar pepitas. A pepita pode ser lapidada e virar uma preciosa joia”, diz a artista, que coleciona conquistas.
“Hoje eu olho tudo o que eu sofri, tudo o que eu passei, mas não com tristeza. É um degrau que a cada dia eu ia subindo, e assim é a vida. Nem sempre as conquistas são boas, mas são conquistas. Temos que tirar o lado bom delas”, ensina.
Estudou ainda por dois anos na Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, em Joinville (SC), teve aulas na Royal Academy of Dance e na Cuba Ballet, e ainda teve a oportunidade de dividir o palco com grandes estrelas, como Ana Botafogo.
Fez as pazes com o pai no dia em que mostrou a ele a carteira de trabalho com o registro profissional de atriz e bailarina. “Mostrei a ele, e nos abraçamos. Disse a ele que sempre seria a filha da dona Selma e do Lau. E ele se foi um pouco depois disso, em um acidente”, diz.
Hoje, além de atriz da Cia de Teatro Os Satyros e colaboradora da SP Escola de Teatro, Márcia Daily ainda acumula os títulos de diva da Praça Roosevelt e Musa da Acadêmicos do Baixo Augusta.
“A mulher é uma dádiva, a mulher é uma divindade. Eu amo ser mulher e não me arrependo de nada do que eu fiz: mil plásticas e silicone… Mas hoje eu olho no espelho, e esse é o corpo que eu queria ter e o corpo que eu sempre desejei ter”.

Márcia Daylin, quando criança, no colo da mãe Selma // Arquivo pessoal
Márcia Dailyn, primeira bailarina trans
do Theatro Municipal de São Paulo // Marcelo Brandt/g1
Márcia Dailyn com as sapatilhas que
utilizou no início de sua carreira // Marcelo Brandt/g1

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