Estimam que, desde que começou a pintar a lápis no verso de calendários oferecidos como brinde pelo comércio até o dia da sua morte, Armando Pereira da Silva tenha produzido mais de mil telas. Eu disse “estimam” porque foi o que li num jornal de alguns anos atrás e não uma conta que eu mesmo fiz.
Não acredito que meu amigo tenha pintado um quadro por semana de todas as semanas por 33 anos seguidos, embora pudesse fazê-lo se fosse, em vida, prestigiado e recompensado financeiramente.
Hoje esses números ou cifras não têm a menor importância, e creio que entre o modesto Juan Rulfo e a milionária inglesa Bárbara Cartland, Armando estaria mais à vontade na companhia do gênio mexicano. Rulfo escreveu apenas dois livros e é um dos mestres da literatura do Século XX. Cartland publicou 723 romances que não ensinam nada a ninguém.
A estreia de Armando como artista aconteceu numa exposição estudantil no salão da antiga Câmara Municipal, na esquina da Francisco Jalles com a Rua Seis. Eram dois desenhos a lápis em cartolina que nenhuma boa alma teve um cantinho para guardar. Em um, via-se o “Viaduto du Chá” (sic), que Armando deve ter copiado de um postal da capital; no outro, o velho terminal rodoviário na Praça João Mariano de Freitas, na Rua Oito.
No outro extremo do histórico de Armando está “Procissão”, óleo sobre tela que ele concluiu entre o Natal de 2001 e o Réveillon, dois meses antes de nos deixar. Procissão está no livro “Jales de Armando Pereira”, lançado no ano passado por ocasião dos 80 anos de fundação da nossa cidade. Marcos Pachi fez uma análise poética-estilística comparando “Procissão” com “Duas Igrejas”, que Armando havia pintado 22 anos antes. Não vou aqui tentar fazer um resumo do texto do Pachi. Seria um desrespeito para com ele, para com o Armando e a inteligência do leitor.
Curiosa essa inversão temporal e esse distanciamento de quatro décadas: “Duas Igrejas”, de 1979, é uma imagem praticamente “atual” ao pintor, do final dos anos 70, com a nova matriz que tantas quermesses custou aos fiéis. O derradeiro “Procissão”, pintado 22 anos depois, é uma imagem do início dos anos 60. Em ambos, além do contraste das cores observado por Pachi, o que mais admiro é a perspectiva improvável. A esquina das ruas Doze e Onze, exatamente do mesmo ângulo e vista de cima, como se Armando adivinhasse os prédios de apartamentos que ainda não existiam de fato, e talvez nem na prancheta, de onde ele pudesse retratar aquilo: “Duas igrejas”, ao sol pleno, onde a cidade se sobressai e as pessoas não importam; “Procissão”, ao anoitecer, sem nenhum carro nas ruas de terra, e um conjunto compacto de pessoas marchando para o Oeste.
Tenho um carinho especial pelo Procissão. Enquanto Armando o pintava (sem saber que seria seu último quadro), eu escrevia uma crônica chamada “Noites mais perto do céu”, em que narro o percurso dessa mesma procissão. A crônica foi publicada no Jornal Debate de 30/12/2001, no final de semana em que o quadro estava secando no cavalete. (Fui buscar o jornal na casa de meus pais para ele ver que eu não estava mentindo). Rimos da coincidência naquele quartinho quente, onde um dia eu o fotografei para a posteridade, sem suspeitar que aquela fosse a última vez que nos veríamos. “Armando, eu estou aí nessa procissão, catando tocos de velas no chão. Eu estou ali naquela igrejinha, onde fui coroinha e nas datas magnas confessava uns pecados de criança para ter direito a comer uma pastilha que não tinha gosto de nada”.
Quinze anos depois, aquele quadro virou música (gravada no CD “Depois do Fim – a música de Toninho Breves e Luiz Carlos Seixas”, disponível também no spotfy), e chegou aos ouvidos do único filho de Portinari, João Cândido, que nos enviou uma mensagem comovida. Na verdade, a música é a mistura de duas telas: “Procissão” e “A Rua Elizabete”, que Armando também pintou em 2001. Ambas estão no livro “Jales de Armando Pereira” e aqui na parede da minha sala – tão perto e tão longe.
- Luiz Carlos Seixas (Compositor, instrumentista e escritor)