Depoimento de Carla Ayres


Criar as(os) filhas(os) praticamente sozinha no Brasil não é uma tarefa fácil, mas essa é a realidade de mais de 11 milhões de mulheres no Brasil, de acordo com o IBGE. Esse texto é sobre uma delas, a Dona Marly, minha mãe. Uma mulher de muita fibra, que se separou quando minha irmã e eu ainda éramos pequenas e que se tornou um exemplo para nós duas. Sempre fui uma aluna aplicada e essa sede pelo conhecimento é algo que herdei dela, pois mesmo depois da sua separação, tive a felicidade de ver minha mãe voltar a estudar, cursar uma faculdade e se desdobrar para equilibrar os estudos e o trabalho para poder criar sozinha minha irmã e eu.
Minha mãe é meu exemplo de força, de perseverança diante das adversidades e de resistência frente às dificuldades. Num país onde a dedicação aos estudos se tornou um privilégio, visto que temos cada vez mais crianças e jovens fora da escola, vendendo doces nos semáforos para ajudar no sustento de casa, posso me considerar uma mulher de sorte. Sempre tive o apoio e o incentivo da minha mãe para que eu estudasse até a conclusão do meu doutorado.
Também sou fruto das políticas sociais de uma época em que o Brasil olhava a educação como um investimento para o seu futuro. Só consegui concluir minha graduação em Ciências Sociais, porque fui beneficiada pelos programas de permanência como bolsas de iniciação científicas e de extensão. São essas oportunidades que fazem com que a filha de uma mãe solteira, trabalhadora autônoma, e hoje professora, possa conquistar o seu espaço. Minha mãe fez tudo o que estava ao seu alcance para que eu pudesse alcançar meus objetivos, mas se as oportunidades não aparecem, o ciclo da desigualdade não é rompido.
Ser mãe não é uma tarefa fácil, afinal de contas, além da própria cobrança sobre o bom encaminhamento das filhas e filhos, elas precisam lidar com as cobranças externas, de uma sociedade que diariamente impõe comportamentos e expectativas. Todas as vezes que nos desviamos desse ideal de indivíduo que nos é imposto, sofremos as violências e preconceitos do tribunal das ruas. É diante dessa sociedade, que te julga pelo jeito de se vestir, de falar e de amar, que as mães de LGBTI+ sofrem diariamente. Como mulher lésbica, tive a sorte de encontrar na Dona Marly, minha mãe, o acolhimento e a coragem para superar essas violências e preconceitos que são tão danosos à nossa autoestima e emocional. Muitos LGBTI+ não possuem a mesma sorte.
Saí de casa cedo, para buscar minha independência e trilhar o meu caminho, mas sempre levei comigo os ensinamentos dessa mulher resiliente, que me ensinou na prática a importância do empoderamento feminino. Foi dela, aliás, uma das primeiras frases feministas que ouvi na vida: “filha, aprende uma coisa, você não precisa ficar com alguém, nem viver a vida toda com um homem, passando raiva e vergonha, pra ser feliz”. Minha mãe é minha grande referência e muito do que eu sou hoje, devo aos seus ensinamentos e exemplos. Sua coragem, me inspira a lutar pelo que acredito ser justo e a buscar o meu espaço, fazendo valer a minha voz. Na política, área predominantemente dominada pelos homens, essas características precisam ser colocadas em prática todos os dias.
Neste Dia das Mães, quero agradecer à Dona Marly por tudo o que ela fez por mim e minha irmã, por todas as noites em claro, pelo apoio incondicional aos meus sonhos e escolhas, por me acolher nas vezes em que a sociedade se achou no direito de me julgar e por ser este exemplo de mulher batalhadora e determinada. Hoje, sou vereadora em Florianópolis e estou pré-candidata a deputada federal pelo PT em Santa Catarina. O resultado das urnas em outubro eu não sei qual será, mas de uma coisa eu tenho certeza: seja qual for, você estará ao meu lado, mãe.
Feliz Dia das Mães para você e a todas as mães que estão lendo esta mensagem e que estão com o coração apertado pelo medo da violência contra seus filhos e filhas LGBTI+. Parabéns também a todas as professoras, que em Jales, me deram aula e sempre foram um pouco mãe, espelho, amigas a influenciar essa minha trajetória também. Vocês são gigantes e esse amor nos encoraja todos os dias a ir cada vez mais longe.

  • Carla Ayres (Jalesense. Doutora em ciências sociais, ativista dos direitos humanos, dos direitos das mulheres e população LGBT e vereadora em Florianópolis)

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