Diz o senso comum que “futebol, política e religião não se discutem”. Estranha sentença, esta, porque todos os dias vemos programas esportivos debatendo os mais diversos tópicos do universo futebolístico; constantes debates acalorados sobre a vida dos políticos e as ideologias defendidas por eles, além de congressos, livros e seminário bíblicos sendo realizados para discutir a interpretação e a aplicação da Bíblia na vida prática.

Nossa proposta nesta pequena série de artigos é tratarmos deste assunto à luz de uma cosmovisão cristã reformada, segundo o conceito do estadista holandês Abraham Kuyper que afirmava: “Em todo o universo não há um centímetro quadrado sobre o qual Deus não possa dizer: ‘É meu!’”.

Esse conceito de soberania absoluta sobre todas as coisas é o pilar de uma cosmovisão cristã na qual a ordem eclesiástica, a vida política e social, a ordem moral e as relações interpessoais (cristianismo e mundo, Igreja e Estado) são pensadas conforme Deus as revela em sua Palavra.

No entanto, há um padrão a ser seguido – conforme Deus estabeleceu em relação à sua Palavra: ela não pode sofrer acréscimo, tampouco qualquer parte pode lhe ser tirada (Apocalipse 22.18). Ela é perfeita e completa, não tem necessidade de melhorias ou atualizações.

Em relação ao futebol e as ideologias políticas, ao contrário, não há dogmas ou táticas inflexíveis. Desde o retranqueiro Zagallo até aos avanços táticos de Pep Guardiola o futebol tem tido inovações interessantes; na política, desde a democracia grega (que nem era tão democrática assim) até às mais recentes ideologias políticas muitas coisas ainda estão por vir.

Qual a razão de tratarmos do assunto nesse espaço? Além da concepção de Abraham Kuyper citada acima, há algumas outras questões a serem observadas. Uma frase atribuída ao estadista francês Charles de Gaulle anuncia um ponto interessante: “A política é algo muito sério para deixarmos só para os políticos discutirem”.

É exatamente esta questão que marca a maturidade de uma sociedade com consciência de participação cidadã crítica e responsável não só na escolha de seus governantes, mas também na condução de seu plano de governo. O apoio acrítico oblitera a reflexão e os debates, ou seja, destrói a própria compreensão da política em si. Nada mais prejudicial a ela que o apoio geral, irrestrito e incondicional.

Outra razão aponta para a questão teológica do mandato cultural estabelecido por Deus na criação: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja sobre a terra” (Gênesis 1.28) inclui a arte de governar e fazer políticas públicas que expressem a boa vontade de Deus em relação a tudo o que Ele criou.

Porém, assim como o mandato social e o espiritual, o mandato cultural também constitui a forma da aliança estabelecida por Deus e representa a Sua vontade normativa. Essa visão de mundo permite-nos olhar todas as construções da vida pela ótica das Escrituras, e nos impede de limitar a política apenas à visão humanista ou à visão particular de mundo. Assim, ela passa a ser vista de uma forma mais ampla, definida pelo único soberano.

Cosmovisão cristã e política – 2ª parte

Como vimos no artigo anterior Deus, ao criar o universo, deu ao ser humano a autoridade para governar e agir como mordomo da sua boa criação, tornando-se responsável por estabelecer domínio sobre a terra. Contrária à visão ideológica e humanista, o bom governo visa alcançar a glória de Deus (primeiro objetivo de cada obra da construção humana) e promover o bem comum (dando continuidade ao que ele fez), na qual a política é apenas um meio para que isso ocorra.

No livro “Visões e ilusões políticas” David Koyzis usa o termo ideolatria para descrever a defesa cega de ideologias políticas como se alguma construção humana fosse suficiente, eficiente e eficaz para consertar todas as mazelas sociais e econômicas – ou mesmo para pensar que os problemas que atingem a humanidade sejam somente estes. Esta visão idólatra das ideologias políticas é compartilhada por Franklin Ferreira no livro “Contra a idolatria do Estado” no qual ele cita o trecho de um discurso de Bento XVI pedindo cautela a todo custo contra a “teologização da política”, sob pena de se tornar meramente uma “ideologização da fé”.

De fato, nossa nação tem sucumbido a este esquema binário de ideologias a tal ponto que até agora não é possível saber se o brasileiro gosta de política ou se é apenas partidário do político que o representa. Essa indefinição alimenta nossos sonhos de messianismo fazendo-nos esquecer do veemente apelo do salmista: “Não confieis em príncipes, nem nos filhos dos homens, em quem não há salvação” (Sl 146.3) e do profeta Jeremias: “Maldito o homem que confia no homem, faz da carne mortal o seu braço e aparta o seu coração do Senhor!” (Jr 17.5).

Qualquer cidadão há de considerar que nenhuma ideologia política – ou até mesmo um sistema de governo – é perfeito. Por maior que tenha sido o desejo de seus criadores em atender as necessidades da população não se pode atribuir a ela um caráter divino.

Todas elas são limitadas e cheias de lacunas que serão preenchidas por outro político visionário ou oportunista, e assim sucessivamente. Se estas ideologias foram pensadas por muitas pessoas e mesmo assim são falhas, o político que foi eleito também será falho ao tentar executá-las – sinais claros da limitação humana. Não se pode esperar que um governo tenha o dom da onipotência a ponto de resolver todos os problemas de uma nação. Conforme disse o teológo Yago Martins, “quando projetamos em determinados partidos ou visões políticas a salvação e a esperança de uma vida melhor em um nível que é quase divino, idolatramos em nossos corações falsas divindades.

Não temos esperanças em forças políticas, ela é terrena. O novo céu e a nova terra não virão por meio de um monarca humano; eles virão pela atuação sobrenatural de Deus no mundo. Quando nosso coração começa projetar muita esperança nas ideias políticas, quando nosso coração acha que a solução dos problemas humanos está em determinados projetos de poder, perdemos tudo de vista.” Expectativas exageradas, sem dúvidas, levam tudo a perder.

Nossa crença evangélica não pode ser humanista (centrada no homem ou no Estado), mas centrada em Deus, o único que tem autoridade absoluta sobre todas as esferas da criação. O Estado não é Deus nem onipotente. É apenas um instrumento necessário ao bem comum (ou para arruinar uma nação).

Rev. Onildo de Moraes Rezende

Rev. Onildo de Moraes Rezende
(Pastor da Igreja Presbiteriana de Jales, Bacharel em Teologia, Licenciado em Pedagogia, Pós-Graduado em Docência Universitária, Mestre em Aconselhamento)

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