Eu me mudei recentemente de um apartamento para uma casa. O meu novo bairro é uma delícia. Bem localizado, perto de ruas centrais, com tudo à mão: supermercado, farmácia, academia, posto de combustíveis, padaria, escolas. De noite, há muitas opções de lugarzinhos bacanas para comer bem, ouvir boa música e se distrair. Minha rua é tranquila e a vizinhança muito boa.
Mas, na última quarta-feira, a visão do paraíso turvou. Eu estava de saída para compromissos profissionais no final de tarde quando percebi alguém sentado bem em frente ao meu portão. Antes mesmo de sair, vi todos os meus sacos de lixo rasgados com o que estava dentro espalhado pela calçada: lixo do escritório, dos banheiros, lixo orgânico.
Ensaiei uma bronca e falei: “pô, amigo, não precisava ter sujado toda a minha calçada assim”. Do alto da minha ignorância, baseada apenas na minha visão de mundo, alguém só reviraria meu lixo para buscar reciclados para poder revender, como a Carolina Maria de Jesus retratou em “Quarto de Despejo – O diário de uma favelada”.
Então ele se voltou pra mim. Era um rapaz, na casa dos 20-30 anos, não mais do que isso. Descabelado, sujo, descalço, só com uma calça caindo pelo corpo magro, a cueca aparecendo quase inteira. Olhos espantados de quem me ouviu, mas não me entendeu. Então eu vi: ele estava comendo o meu lixo. Comendo o meu lixo!
Minha reação foi entrar em casa correndo, pegando toda comida que via pela frente, pão, bolo, bolacha, banana. Quando voltei para a frente da casa, ele já não estava mais. Por um momento pensei que aquilo tudo nem tivesse acontecido, mas a imundície na calçada me provava o contrário.
Atrasada para o compromisso profissional, limpei o chão chorando, com ânsias, em dor. Eu tinha encontrado “O bicho” do Manuel Bandeira. Para quem não conhece, esse poema foi escrito em 27 de dezembro de 1942. Na obra, ele faz uma dura crítica social à realidade brasileira dos 1940. O texto diz:
“Vi ontem um bicho| Na imundície do pátio| Catando comida entre os detritos.| Quando achava alguma coisa,| Não examinava nem cheirava:| Engolia com voracidade.| O bicho não era um cão,| Não era um gato,| Não era um rato.| O bicho, meu Deus, era um homem.
O poema curto e duro denuncia uma ordem social fraturada. Denuncia o abismo da sociedade brasileira. Mostra que muitos se alimentam do que poucos desperdiçam. O humano se torna irracional pela urgência de atender as suas necessidades básicas porque o corpo clama por comida. O homem-bicho é reduzido à sua necessidade de sobrevivência, humilhado ao vasculhar comida entre detritos, desumanizado pela sua miséria e pobreza.
O homem da minha calçada – e todos os outros que vivem como ele – precisam de ajuda. Eles não conseguirão sair dessa condição sozinhos. Eu sei que algumas pessoas pensam que eles são vagabundos e drogados. A condição de drogado é muito provável, quem aguentaria são essa situação? E pessoas com fome e drogadas não conseguem mesmo trabalhar.
A Constituição brasileira afirma que a obrigação de cuidar dessas pessoas, tirá-las do vício e encontrar trabalho para elas é do Estado. No nosso caso, o Estado é representado pela prefeitura, que precisa providenciar, urgentemente, assistentes sociais, médicos, psicólogos, centros de recuperação, ofertas de emprego, ou seja, tudo que um ser humano digno precisa.
Talvez alguém acredite que eles não mereçam. Talvez alguém acredite que eles escolheram esse destino. Talvez alguém ainda pense que Deus escolheu quem teria vida boa e quem amargaria essa podridão. Preciso lembra-los: a fome não é criação de Deus, mas sim dos homens.
Ayne Regina Gonçalves Salviano (É jornalista e professora. Mestre em Comunicação e Semiótica. Empresária no setor de educação em Araçatuba e Birigui)