Não faz muito tempo toda cidade, bairro ou vila cidade tinha seu próprio time de futebol, e os seus torneios locais eram muito mais importantes que o campeonato brasileiro, o estadual ou a libertadores de américa, rivalizando com eles público e paixões. Os craques eram respeitados pelas ruas tanto quando se dirigiam para os seus trabalhos, quanto durante a cachacinha do final das tardes. Eram ídolos que tinham façanhas comemoradas e criticadas com igual dose de camaradagem. Os laços eram tão estreitos, que davam margem para o surgimento de apelidos que seriam perpetuados seja pela honra, ou pelo escárnio. “Tião-pé-de-pano”, Zé-goleiro”, “Esquerdinha”, “Cai-Cai”, eram nomes tão famosos que poderiam ser assinados nas folhas de cheque.
Uma personagem mitológica do bairro era o Tio Antônio. Sua profissão era de contabilista titular de um escritório tão concorrido que chegava fazer fila na porta nos últimos dias de entrega de declaração de imposto de renda, no tempo em que os formulários ainda eram preenchidos à mão e todas as contas eram finalizadas a lápis, instrumento que – nos intervalos – voltava para trás da sua orelha. Antônio era um homem tão correto e justo que seus funcionários (todos os dois) o tinham como um segundo pai. Na igreja do bairro era ministro da eucaristia e não perdia a missa dos domingos. Para variar, tinha acumulado o cargo vitalício de tesoureiro das quermesses e da casa paroquial. Tio “Tonho” só não conseguia acertar uma conta: a de quantos afilhados e compadres possuía, por tantas vezes ser convidado para os batizados.
Porém, nas noites de quarta e nas tardes de sábado, o pacífico Antônio se transformava. Transmutava-se em “Tonhão-palmito”, o temido zagueiro do portentoso Clube Atlético “Galinha-Verde”, ou Poleirão, como era chamado pelos adversários zombeteiros. Tio Tonho não era famoso exatamente pela sua habilidade com a bola, mas, sim, pela quantidade de palavrões e caneladas que usava para conter os adversários. Dentro do campo ele se transformava, passando de papa hóstia para uma muralha que metia medo e fazia gelar as canelas dos centroavantes. Seus quase dois metros de altura ficariam melhor debaixo das traves, como goleiro, mas ele gostava mesmo era de se locomover pela zaga como um trator, assustando e intimidando os chutes a gol. O complemento “palmito” associava a sua altura comparável à de um coqueiro, com a tez “branco-escritório”.
Já aposentado e bem velhinho, a artrose o impede de frequentar os campos, e os amigos antigos já se tinham ido há tempos. Seus novos companheiros não se reúnem em botecos para beber e fazer piada. Todos são fascinados pelas novidades do WhatsApp e se falam só em um grupo. Tio Tonho, agora, passa o dia ouvindo as notícias repassadas pelos amigos virtuais e nem mais frequenta a igreja. Além de achar que vigário é politiqueiro, ouviu no zap que existe uma ‘nova ordem mundial’ liderada pelos comunistas que estão até dentro do Vaticano, numa tal quianôn (QAnon). Também não vai mais ao médico. O pessoal do grupo disse que para o tratamento da artrose o bom mesmo é cartilagem de tubarão, pois viram muitos médicos falando disso na internet. Os tratamentos tradicionais só servem para os médicos ganharem dinheiro da indústria farmacêutica.
Tio Tonho não lê, porque foi informado pela postagem da sua vizinha que toda a imprensa é vendida. Ele, certamente nem sabe que até a associação reumatológica australiana já se posicionou contrariamente ao uso dessas substâncias, apesar de reconhecer que elas não fazem mal (nem bem). Se ele se interessasse em saber mais, bastaria conferir em: http://arthritistas.org.au/wpcontent/uploads/2015/05/Glucosamineandchondroitin.pdf
Dr. Manoel Paz Landim
(Cardiologista, Mestre em Medicina pela FAMERP, Preceptor e Médico do Ambulatório de Hipertensão do Departamento de Clínica Médica da FAMERP, São José do Rio Preto)