Meu sobrinho morre de medo do “azul-babão”, um personagem mal-acabado que povoa o Youtube e, na verdade, não tem nada de aterrorizante. É um bicho que beira o ridículo, se comparado aos horrores da minha geração, a mesma que sobreviveu à loira do banheiro e à maldição dos quadros das crianças chorando. Aquilo sim era escabroso. Tínhamos tantos monstros a enfrentar que era difícil separar fantasia de realidade e o modelo de educação pelo medo contribuía para essa confusão. Estamos falando da década de setenta, um período diferente do atual.
Meu pai não era rígido. Dentro da sua leniência, bastava que os filhos frequentassem a escola e tomassem cuidado com o fumo, que a vida tomaria conta do resto. Já com a minha mãe a história era diferente. Dona Maria encarnava a linha dura do regime, desfiando diariamente um rosário de regras que, se não captado pelos ouvidos, o seria pelo couro do lombo. Seus conselhos iam desde não fazer às filhas dos outros o que eu não gostaria que fizessem com minha irmã, até obedecer ao horário de chegar em casa, sob pena dela ter que acionar um tal “juizado de menores” para me buscar onde quer que eu estivesse. E a construção mental que eu fazia desse tal “juizado” punha no chinelo qualquer bicho-papão e o tal azul-babão.
A eficácia das regras contava com a contribuição de uma rede nada subterrânea de informações, que impossibilitava qualquer tentativa de travessura secreta na minha cidadezinha. A molecada estava sempre às vistas dos outros pais, dos vizinhos e dos parentes, as testemunhas prontas para o esclarecimento (e para o aumento) dos malfeitos. Essa vigilância, somada à ameaçadora sombra do tal juizado era a Linha Maginot da delinquência infanto-juvenil.
As simples ameaças já são capazes para instaurar o terror no imaginário pessoal, mas quando é o próprio estado que tem um órgão oficial de repressão, como a tal “polícia moral” imposta pela ditadura teocrática iraniana, é impossível escapar. O medo nunca foi e nem será instrumento para as sociedades galgarem degraus do processo civilizatório. Os males físicos e psicológicos deixam marcas por gerações tanto no plano individual quanto no coletivo. Pessoas se engajam e coadunam com os cerceamentos, por crerem que o colaboracionismo as proteja. Além disso gera uma sensação de pertencimento que também garantem uma sensação de segurança. Isso explica os filhotes das ditadura. Ativistas iranianos relatam que, apesar do anúncio do encerramento oficial das atividades do instituto, as medidas restritivas permanecerão exatamente por causa dessa rede subterrânea que continuará existindo.
As políticas sociais baseadas no terror, na violência e na limitação de pensamento geraram uma nova categoria de “doenças sociais”, a SINDEMIA, uma somatória das interações biológicas, sociais e econômicas na população. O estudo deste mal foi muito abordado por Brandon A Kohrt e Lauren Carruth (Soc Sci Med . 2022 Feb;295:113378), que concluíram que até as doenças crônicas, como diabetes, estresse e depressão têm pior evolução onde há violência política. Prefiro o meu juizado de menores e o chinelo da minha mãe.

Dr. Manoel Paz Landim
(Cardiologista, Professor da FAMERP de São José do Rio Preto)

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