MEDICINA/EVIDÊNCIA

Fico imaginando a reação do Véio Abel recebendo à beira de seu colchão de palha um tratamento de emergência feito por um drone, como está acontecendo na Suécia . Minha imaginação limitada também não permite vislumbrar alguém capaz dissuadi-lo do uso preventivo de AAS infantil. Afinal de contas foi um verdadeiro parto convencê-lo – tempos atrás – a aderir o uso daquela pílula que preveniria o ataque cardíaco, como se acreditava até a década passada . Tá certo que o véio não mora lá na Europa, onde as máquinas voadoras que mais parecem uma libélula gigante entregam um desfibrilador externo automático para quem está fora do hospital. Também não está sendo fácil excluir o remedinho do rol das medidas preventivas, justamente num país em que o nível de instrução é muito maior que o nosso.
Se na Suécia, que tem estradas (bem) asfaltadas até para chegar na casinha do cachorro, o pessoal precisou usar a via aérea para vencer a dificuldade que as ambulâncias enfrentavam para chegar no tempo exato de prestar assistência às vítimas de infarto, imaginemos o que acontece nas estradinhas de terra do interior de Goiás, terra do nosso já famoso Abel.
Vai ser muito difícil convencer não só nossos matutos, mas qualquer brasileiro, que um dia esse recurso estará disponível no nosso país. E não mais fácil está o trabalho de erradicar a verdadeira mania em que se transformou o uso do salicilato (AAS) na prevenção primária das doenças cardiovasculares. Até as crianças estarão contra esta empreita. Quem nunca pegou um daqueles comprimidinhos quando os adultos não estavam olhando, e jogou goela abaixo na falta de balas e outras guloseimas?
Todo mundo acredita que “ralear” o sangue é uma boa pedida, afinal de contas, o infarto acontece porque o sangue engrossa, de acordo com essa mesma crença. Sabemos que os idosos relutantes quando se trata de mudar hábitos arraigados, mas é justamente a faixa etária dos maiores de sessenta anos a mais prejudicada. A possibilidade de sangramento digestivo a partir desta idade mostrou que o malefício no uso dos antiagregantes plaquetários é menor que o benefício. O milagre foi revogado. A pílula rosa não tem utilidade na prevenção de infarto, exceto para os diabéticos de muito alto risco cardiovascular. Nem os remédio nos chegarão pelos céus e nem o perigo de morrer por ataque cardíaco vai diminuir apenas pelo fato de tomarmos um remedinho. A dificuldade, que estava escondida debaixo do tapete, está novamente batendo à porta.

“Automated External Defibrillators delivered by drones to patients with suspected Out-of-Hospital Cardiac Arrest.” Sofia Schierbeck, Jacob Hollenberg, Anette Nord, et al, European Heart Journal, online Aug. 27, 2021, doi: 10.1093/eurheartj/ehab498

US Preventive Services Task Force Recommendation Statement April 26, 2022 Aspirin Use to Prevent Cardiovascular Disease.Article Information JAMA. 2022;327(16):1577-1584. doi:10.1001/jama.2022.4983

  • Dr. Manoel Paz Landim (Cardiologista, Mestre em Medicina pela FAMERP, Preceptor e Médico do Ambulatório de Hipertensão do Departamento de Clínica Médica da FAMERP, São José do Rio Preto)

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