O Raul Seixas tinha uma revista guardada há muitos anos para nunca mais abri-la (Canto para minha morte – 1984), e eu tenho um lugar para visitar todos os dias: a caminhonete C10 do meu avô com as portas destrancadas e a chave no contato. Aquela joia estacionada à sombra da sete copas, era um convite para aventuras incríveis. Atrás do volante eu virava a chave só pelo prazer de ver dois pontinhos vermelhos acenderem. Verificava a trava do freio de mão, pisava no “desembreio” e movia a alavanca do câmbio para o ponto morto. Girava o pisca-pisca e pronto! Era só ligar a bichona e sair pelo mundo.
Mas, as viagens aconteciam com o motor desligado.
Minha imaginação dirigia para onde quisesse em velocidades incríveis. A mão pra fora, com o vento imaginário a empurrando para trás. Nas ultrapassagens perigosas eu buzinava para os cavalos, vacas e charretes, antes de deixá-los cobertos de poeira. Procurando meu destino preferido ensinei o poeta a abrir sua revista para seguir viagem e procurar lugares onde descer não é importante, pelo prazer de continuar o passeio.
As viagens só terminavam quando o meu avô gritava:
– Sai daí, moleque! Você tira tudo do lugar! Vai acabar estragando o carro…
Anos mais tarde descobri minha vocação para tirar tudo do lugar e tornei-me um prodígio em estragar. Assim, hoje sou de tirar ideias mal ajambradas dos seus lugares confortáveis e de estragar caminhos condutores para desgraças do pensamento. Joguei preconceitos no lixo graças a esse talento e iniciei novas viagens traçando rotas antes inimagináveis. Quando me sinto perdido procuro recordações e nelas me deixo ficar o tempo necessário, até sentir vontade de guardar a revista para ser folheada quando tiver vontade.
Dali não saio.
Dali ninguém me tira.