O meu ceticismo foi embora no dia que tive a oportunidade de assistir uma mágica acontecendo bem na minha frente. E, antes de alguém dizer que fui enganado por um espertalhão, é bom deixar claro que o mágico de ocasião foi meu próprio pai: o mesmo sujeito sem vocação para outra coisa senão a lavoura e a venda de pinga por trás (e pela frente) do balcão. Meu pai também não era versado nas leis do ocultismo, e nem tinha a intenção de ser mais rápido do que os meus olhos. Não possuía vocação para os palcos e o maior público que já tinha conseguido reunir foi seus três netos, quando o rodeavam ávidos por presentes nas noites de natal.
Mas foi meu velho que teve o dom de transformar o Senhor Ovídio, um senhor com mais de oitenta anos e seu sócio José, igualmente octogenário, em pessoas completamente diferentes. A mágica aconteceu ao redor da cama de hospital onde meu pai se recuperava da sua última cirurgia. Ali, à minha frente, sem pano preto, nem cartola, os três velhinhos se transmutaram instantaneamente em Nenê, Nanico e Vidinho. Crianças reunidas à sombra da mangueira após a escola para brincar, fazer travessura, jogar bola e matar o tempo, além – é claro – de reclamar a ausência do Boleia, que não costumava faltar. A mágica me transportou para o mundo dos três moleques, onde não havia avôs, rugas e nem bengala estacionada na mesinha. Ali estavam amigos intocados pelo tempo e a amizade que resiste e cresce.
Naquele quarto de hospital entendi a dimensão do tempo.
A história do deus Cronos engolindo seus filhos enfim fez sentido e compreendi que existe uma cronologia independente do passar das horas, do dia e noite, do relógio, e das estações do ano. Fui apresentando ao tempo de Kairós, que é o tempo do conhecimento e dos sentimentos, o tempo do eterno. Em volta daquele leito não tinha lugar para idades. Só para sentimentos. Os amigos reunidos não conheciam a dor e naquele momento o ar que o enfisema roubava não faltou para a respiração do meu pai. O ambiente se encheu de uma verdade que transcende e que ensina.
As lições não são aprendidas na hora. Elas dependem de outras mágicas e de truques que vamos descobrindo ao abrir nossas mentes. Só hoje, onze anos após aquele encontro, entendo a lição. Quem morreu emprestou à terra seu corpo físico para alimentar as metamorfoses que encerram o ciclo. Quando temos tempo para sair das esferas que movimentam o nosso cotidiano e nos abstrairmos, enfim encontramos os amigos e as emoções.
A realidade às vezes se esconde.
Quando encontro o S. Ovídio e o José ainda pergunto pelo Boleia, que não pôde participar daquele encontro e volto a enxergar o Nenê, o Vidinho e o Nanico esperando o Boleia voltar ao campo com a bola que saiu para buscar. O Nenê batia muito mal de perna direita.
Dr. Manoel Paz Landim (Cardiologista, Professor da FAMERP de São José do Rio Preto)