Minha existência é dividida em duas partes: Antes e Depois do filho (ou Af e Df para simplificar). Af foi a fase preparatória, enquanto DF é Vida Verdadeira, experiência válida, compreensão de mundo, madureza. Além de ter sido presenteado pelo pertencimento ao mundo, ganhei momentos de eterna emoção, como o de assistir pela milésima vez a um filme deitado no chão com ele. As falas e até onde o videocassete distorcia a cena e o som estarão eternamente a um estalar de dedos. A pantera Baguera, escudeira de Mogli, o urso Balu e a serpente Kaa enrolando o menino-lobo enquanto o tigre Sherikan não ainda não tinha chegado, são meus velhos conhecidos. Essa turma ensinou a nós dois coisas além de música e das gostosas lembranças: amizade, companheirismo e cuidados.
Rudyard Kipling, autor de “O Livro da Selva”, inspirou-se em um personagem real para criar o seu Mogli. Trata-se de Dina Sanichar, um indiano encontrado aos doze anos, após ter sido acolhido e criado por uma alcateia de lobos nas densas florestas paquistanesas. Porém, antes de Mogli e Sanichar, os príncipes Rômulo e Remo, filhos do rei Marte e de Reia também foram alimentados por uma loba, chamada Capitolina. Já Edgar Rice Burroughs buscou nas savanas da África a inspiração para escrever Tarzan (cujo significado é homem-branco). O garoto era filho de um aristocrata inglês e foi adotado, amado, embalado e amamentado por uma gorila como se fosse sua própria mãe. São histórias semelhantes entre si e também muito parecidas com a minha e meu filho por serem simbólicas.
A coincidência delas está no acolhimento e não na cor da pele escura de Mogli, na tez clara de Tarzan, ou na condição monárquica dos gêmeos. É a expressão de um sentimento puro e primitivo como tradução da igualdade entre os seres. Os personagens foram aceitos como eram. Jamais abandonados pela comunidade, mas incorporados por ela. Essa aceitação está na gênese das lembranças boas e na capacidade de fazer o coração bater com mais força quando me vejo deitado no chão com o Felipe de olhos fixos na TV.
A emoção chegava forte quando o ancião-lobo convencia o padrasto do Mogli a levá-lo para a aldeia de homens. O sábio da manada, contudo, não agia movido por discriminação, mas respeitando a natureza humana do menino e almejando um futuro melhor para ele, numa coerência hoje rara. Na atualidade, os marqueteiros do cinema tentar mudar as características físicas de personagens já existentes. Redesenhando Ariel como negra um Salsicha do Scooby-Doo estereotipado, ao invés de simular uma atmosfera de inclusão perdem a oportunidade de reproduzir pessoas atuais e suas realidades, deixando a nu carências de originalidade.
Escritores e roteiristas deveriam espelhar essa sociedade sem rumo, e não maquiar a história adaptando heróis. Querer uma Cleópatra Núbia, portanto negra e não grega como era, não muda o passado, nem ressignifica a realidade. Como mostrado por Thilagawathi Abi Deivanayagam no Lancet em maio de 2023 (Envisioning environmental equity: climate change, health, and racial justice), o mundo mostra a desigualdade pelos indicadores de doença, clamando por justiça racial.
Dr. Manoel Paz Landim (Cardiologista, Professor da FAMERP de São José do Rio Preto)