MEDICINA/EVIDÊNCIA

Já me submeti a uma entrevista onde a única pergunta que me fizeram foi se eu gostava de escrever. A resposta parecia óbvia para alguém que, como eu, chegou a escrever cartas quase diárias para a namorada distante. Porém, o que eu não sabia é a que tipo de redação o meu examinador estava se referindo. Em verdade, o que ele queria saber é se eu estava afeito à redação de artigos acadêmicos, não à literatura amorosa. As cartas de amor são muito mais prazerosas do que fazer a descrição de materiais e métodos ou do resumo da bibliografia, principalmente porque elas não pedem uma conclusão final. Aliás, o texto que se encerra com uma interrogação subliminar é muito mais interessante do que aquele que termina com um ponto final.
Agora que nos limitamos a redigir textos nos aplicativos de mensagens e a pontuação foi substituída por emojis, que são aquelas figurinhas simpáticas que servem para dar leveza e humor às escritas atuais, ou até mesmo para substituírem totalmente as letras, as regras gramaticais andam um pouco esquecidas. Eu também não havia percebido que esses meus recados atuais, batucados nas telas dos smartfones vêm invariavelmente sem a presença de pontos finais. Quando um amigo me alertou para esse fato, imediatamente me veio à mente a figura da minha inesquecível terapeuta Dr.a Maria Lúcia Berto Daher. Flagrei-me rindo sozinho imaginando o que ela diria se eu lhe contasse, em uma de nossas saudosas sessões, que eu esquecia justamente daquele tipo de intervenção gráfica: “Ato falho, não é Manoel?”, diria a doutora com sua sagacidade ímpar.
Talvez eu tenha mesmo dificuldade em colocar ponto final em muitos assuntos, mas isso é assunto para outra hora, porque hoje eu percebi que essa deficiência está presente também na genética avançada. No dia 31 de março de 2022 os cientistas voltaram á tona com um assunto que eu julgava já estar esgotado: Disseram que, finalmente, haviam concluído o sequenciamento completo do genoma humano, enquanto eu achava que já haviam conseguido fazer isso há anos. O que se tinha conseguido estava incompleto, pois cerca de 8% da sequencia completa ainda faltava ser decifrada em 2003, quando os estudos iniciais foram feitos. Tratava-se de pedaços repetitivos de DNA que eram difíceis de combinar e permaneciam sem a tradução completa.
Os Doutores Eric Green e Adam Phillippy, ambos do NHGRI (Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano) celebraram a descoberta salientando o quanto esse progresso é importante para a compreensão de doenças e pesquisa de tratamentos específicos em futuro não mais tão distante. O surpreendente da notícia é o que ainda pode estar por vir, pois – talvez – daqui a novos vinte anos, olhemos para trás e vejamos apenas um ponto de exclamação no lugar daquilo que estamos teimando em terminar com um ponto final.
Nota: Tive a felicidade de ser paciente da doutora Maria Lúcia Berto Daher durante muitos anos, quando cada sessão – por ela intitulada de “vivência” – era um encontro com todos os lados do meu íntimo. As revelações daquele divã abriram várias portas e fecharam caminhos obscuros, sempre sob sua condução primorosa. Suas intervenções revelavam não somente a sua grande capacidade de entendimento da psique humana, mas o amparo de quem compreende as dores e os anseios pessoais. Este texto é uma lembrança feliz.

  • Dr. Manoel Paz Landim (Cardiologista, Mestre em Medicina pela FAMERP, Preceptor e Médico do Ambulatório de Hipertensão do Departamento de Clínica Médica da FAMERP, São José do Rio Preto)

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