Nos meus tempos de criança uma entidade se manifestava na nossa casa. Mas aquela presença sobrenatural não metia medo. Pelo contrário. Era delicioso quando aparecia. E como não ser, se vinha acompanhada pelo cheiro delicioso do bife da minha mãe, verdadeira artista na cozinha? No quintal, ou onde eu estivesse, dava para antever sua aparição. Toda família era convocada pelo faro e pela fome. O fantasma era da nossa intimidade.
O espírito do além descansava em um nicho na parede da cozinha feito originalmente para abrigar um filtro de água. Lá se acomodava como podia, sem muito conforto, numa caixa preta. Tinha vida própria. Meu pai chegava, levantava a mão para despertá-lo e, de repente, sua presença enchia a casa. Eu só o via de baixo. Minha pequena altura não permitia olhar-lhe nos olhos e isso contribuía para o mistério. Onde meu pai o tocava para ele aparecer?
Nossa casa não era a única premiada pelo fenômeno. Ele rondava todas as da nossa família. Sempre no alto, longe do meu alcance. Na minha avó, também cozinheira, também se convivia com o mesmo ente. Talvez nossas mulheres fossem feiticeiras disfarçadas de mães e avós, prontas para conjurá-lo. Faziam poções de olor e horários semelhantes. Não à meia-noite como nos filmes, mas ao meio dia. Meu avô, igualmente alto como meu pai, tinha um relógio de badaladas. Na casa dele o fantasma surgia exatamente durante o curso delas.
Nosso poltergeist podia ser um parente com saudade. Um dos inúmeros comilões falecidos voltando para acompanhar nossos almoços, ou simplesmente pedindo atenção. E ninguém saía da mesa enquanto ele estava. Nosso transe só se desfazia quando meu pai ou avô se levantavam e o despediam. Só nessa hora as feiticeiras abandonavam seus lugares e se dirigiam às pias para lavar os teréns.
Mas o registro de sua última aparição foi à noite. Atraído pelo aroma da chapa de sanduíches do bar do Kazuo ele se revelou para mim. A mesma voz vinda do alto, acionada pelos meus velhos, se materializara na minha frente também esperando ficar pronto o seu bauru, como também estávamos meu pai e eu. Meu pai, então, finalmente revelou o mistério ao me apresentar o ente frequentador das nossas casas: – Este é o Deonel Rosa Junior, locutor da rádio, falou ele. Naquele instante se deu a minha descoberta. Os rádios não tinham vida própria. Era uma máquina reproduzindo a voz agora materializada na minha frente.
Durante os próximos cinquenta anos o radialista encarnou-se e se tornou real sem jamais perder a aura sobrenatural. Foi a pessoa mais importante da cidade. Revivi o susto dos dias de criança quando ele veio ao meu consultório submeter-se aos meus cuidados profissionais e assim continuou até trair-me para desaparecer sem aviso numa madrugada de segunda-feira.
Deonel é a personalidade mais importante da cidade e agora reassumiu sua condição onipresente como as ondas do rádio e as páginas de jornal. Desse jeito estará eternamente no cotidiano da cidade construída com sua ajuda.
Obrigado, Deonel.
- Dr. Manoel Paz Landim (Cardiologista, Professor da FAMERP de São José do Rio Preto)