Discutir sobre a humanização em um cenário com exponencial avanço tecnológico parece, por demais, ser um paradoxo. Entretanto, homem e inteligência artificial nunca estiveram tão interdependentes, o que aponta para a importância de refletirmos sobre peculiaridades humanas e seus impactos nesse contexto. Carlos Drummond de Andrade já nos alertava: “não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”.
Que o homem é um ser social já não é mais novidade; que a interação social produz criatividade; que cuidar e fazer o bem a outras pessoas, ao planeta e aos animais traz um renovo enorme para quem o pratica; que estar atento ao outro está muito além de suprir com bens materiais. São exemplos de “pequenos tempos” gastos, ou melhor, investidos sem precisarmos de escolaridade, posição social, tampouco dinheiro, não é verdade?
Sobre essa “simplicidade”, Helena Norberg-Hodge, pesquisadora e autora de livros na temática da economia global, traz o termo “relocalização da vida”. Segundo ela, “relocalizar a vida” é utilizar estratégias funcionais para problemas triviais (que podem ganhar proporções muito maiores), ou seja, desenvolver pequenas ações nas comunidades que repercutem em maiores ofertas de trabalho digno, de customização, de mutirões em favor de causas sociais, de fortalecimento dos pequenos agricultores, enfim, relocalizarmos “a nós mesmos” neste vasto e acelerado mundo.
O dicionário on-line Priberam (2022) define o verbo “relocalizar” como “localizar novamente”. Certamente muitos poderão pensar que isso também não é novo (e de fato não é, daí o prefixo “re” – muitos de nós já vivemos tudo isso, ou como agentes da ação ou como beneficiados, não importa). O capitalismo tem nos motivado a sermos, cada vez mais, muito práticos em nossas tarefas, tanto que estamos deixando até de cumprimentar, de termos tempo para o café com a família, da visita aos domingos, da planta no quintal, de olhar o céu, de observar as plantas… (parece filosófico, saudosismo, mas é real).
Estamos deixando outras paixões nos tomarem (a tecnologia, se não bem usada, é voraz e nos devora) e vamos nos enveredando por outros caminhos mais complexos, deixando a simplicidade se passar por inferior, nos afastando de nossa essência humana – gradativamente, vamos criando atalhos para chegarmos abastecidos no “ter” em oposição a grandes vazios interiores.
Relocalizar a vida, então, nesse cenário globalizado, é aderir às mudanças sim, mas sem abrir mão do cheiro do café que nos busca onde estamos, da cortesia, da humildade e, por fim, da corresponsabilidade com o outro e com o meio ambiente. Revoguemos a frase célebre de Milton Santos, geógrafo brasileiro: “o que estamos vivendo hoje é que o homem deixou de ser o centro do mundo”. Façamos de 2023 um ano de relocalização da nossa vida.