Essa minha mania de não aceitar o óbvio como expressão legítima do que aparenta ser verdade muitas vezes me conduz a agradáveis surpresas e felizes descobertas. Uma dessas questões tem a ver com a tão propalada ideia de que fé e religião são inimigas irreconciliáveis. Essa proposição aceita como verdade absoluta merece uma observação mais acurada e livre de preconceitos.
Para o propósito desse artigo vamos usar a expressão fé como sinônimo de religião cristã estruturalmente organizada e reconhecida por seu conjunto de doutrinas bíblicas. Por ciência queremos nos limitar ao conceito que significa 1- conhecimento (e, neste caso, a teologia seria uma ciência.
Aliás, houve época em que ela era chamada de “a rainha das ciências”) e 2- método de conhecimento laboratorial decorrente da identificação, pesquisa e explicação de algo observável ou não. Um conceito inerente a ambos é que tanto a religião quanto a ciência trabalham com aquilo que aceitam ser verdade e, portanto, requer o assentimento da fé, da aceitação, enfim, de algo que possa ser explicado apologeticamente.
Essa convicção está presente na religião cristã quando afirma que a Palavra de Deus é a única regra de fé e prática, como também está presente na religião científica quando usa o famoso mantra de que “a ciência já provou que…” para encerrar qualquer discussão que se possa ter. A palavra final foi dada e não há nada que nós, meros servos da religião científica possamos fazer para contestar – ainda que meses depois uma nova descoberta venha tornar ultrapassada aquilo que foi mostrado como a última descoberta cientifica.
O leitor pode perceber que aqui estou citando a ciência como uma religião. Na verdade, este nem é um pensamento meu e, sim, de diversos pensadores e intelectuais cristãos ou não que asseveram um grau de primazia científico que garanta seu destaque no panteão de nossa época. Assim, as associações são feitas: o laboratório, o cientista, o jaleco e os teóricos como Darwin seriam os equivalentes ao templo, o sacerdote, à toga e a Bíblia, respectivamente.
Essa ideia da ciência como uma religião ficou muito evidente em 2020 no início da pandemia quando inúmeros artigos foram escritos e entrevistas foram feitas procurando saber se seria Deus ou a ciência que iria salvar o mundo da Covid-19. Ideia bastante tola e dualista, pois pressupõe uma hierarquia de esferas onde poderes divergentes competem entre si para adquirir mais súditos crédulos e subservientes. Visão de quem acredita que a ciência não tem nada a ver com a fé. Uma cosmovisão bíblica confere aos cientistas a tarefa de serem instrumentos nas mãos de Deus visando o bem comum, estejam eles conscientes disso ou não.
A doutrina cristã da Graça Comum é muito mais abrangente do que se costuma pensar, pois, ao mesmo tempo em que gritamos “viva a ciência” também afirmamos confiantemente que só o Senhor é Deus soberano sobre todas as coisas. Não existe esfera de poderes, mas sim um único poder que rege todas as coisas e confere aos homens sabedoria para executarem a boa direção que Deus determina e administrar os recursos da Sua graça.
Como foi dito, o conceito popular de um abismo intransponível entre fé e ciência está tão profundamente estabelecido que muitas pessoas sequer o questiona. No próximo artigo gostaria de contemplar a origem dessa desavença e descompasso. Como isso começou? Como essa ideia é sustentada ainda hoje? Um cientista pode ser cristão e ainda manter a fé? Ou a ciência implica, automaticamente, no abandono da fé?
Até a próxima vez.
- Rev. Onildo de Moraes Rezende (Pastor da Igreja Presbiteriana de Jales, Bacharel em Teologia, Licenciado em Pedagogia, Pós-Graduado em Docência Universitária, Mestre em Aconselhamento)