A equipe médica de cuidados paliativos do hospital Albert Ainsten trabalhou para amenizar a reta final do tratamento de Pelé//Fotos: Arquivo redes sociais

Os mais jovens irão dizer que surfei na “onda do momento” ao escrever este artigo. Este não tem só esse objetivo de aproveitar que o melhor jogador de todos os tempos faleceu para abrir discussão sobre um dos temas mais importantes dentro da medicina: os cuidados paliativos.
Dentro da medicina aprendemos sempre a curar, mas e quando não é possível?
Conversar sobre o fim de vida é um paradigma a ser quebrado. Mas porquê eventualmente é tão fácil de falar sobre a “vida eterna”, sobre o paraíso, mas tão difícil conversar sobre o processo de morte?
Como deixar esse processo menos difícil, algo que deve ser natural. Pois todos vamos morrer não é verdade?
Quando algo ruim acontece; por exemplo um caso de câncer na família, uma gestante que perdeu seu bebê, um casal que teve seus planos interrompidos porque um deles faleceu; enfim temos a seguinte expressão : -“Foi uma tragédia”.
Parafraseando Marcos Piangers (repórter, escritor e figura pública): “… a vida é um amontoado de caos e coincidências. Acho que hoje estamos aqui e amanhã não estamos mais … Tragédia é quando a gente não viveu…”
Quando se adoece de uma patologia crônica (câncer, insuficiência renal, insuficiência cardíaca, etc…), o processo de morte segue uma evolução de acordo com a sua gravidade e prognóstico. É muito comum percebermos apenas no processo final do adoecimento os sinais em cada indivíduo: emagrecimento, indisposição, palidez, falta de ar, etc…
Nesse momento quando as alterações físicas são mais evidentes é que nos deparamos com a finitude. Mas o fim deve ser da doença e não do doente, cada um deixa seu legado, suas boas recordações, suas memórias afetivas e até um sentimento melancólico, mais conhecido como saudade.
Então onde entra o cuidado paliativo?
O cuidado paliativo, e nessa definição talvez me considerem um herege os que entendem do tema, é a ciência que , em resumo, trata do sofrimento causado por uma doença terminal. Vejam que a doença é terminal e não o paciente.
Sofrer, não é apenas doer, faltar o ar, não conseguir comer, não conseguir dormir. Entendam que qualquer sensação ruim que o paciente perceba pode ser caracterizado como sofrimento. E os cuidados paliativos é a nobre arte de entender essa rede complexa de sinais e sintomas e saber contê-los na sua totalidade ou amenizá-los.
Todos os sintomas são totais. Vou explicar: houve uma época na medicina em que saúde era ausência de doença pura e simplesmente. Hoje concordemos com a definição da Organização Mundial da Saúde que é o completo bem estar físico, social e mental. Portanto, por exemplo a dor que tanto nos assusta pode não ser só física. Afinal todos os poetas e escritores que descreveram a dor da saudade não podem estar de todo errados, não é verdade?
Todos os sintomas possuem quatro dimensões a serem consideradas: física, social, mental e espiritual. Se quaisquer uma delas está descontrolada, isso afeta o indivíduo como um todo. Logo, quando se dá o remédio e não temos o controle do sintoma, pode ser que uma das outras dimensões do indivíduo esteja afetada: uma relação familiar mal resolvida, um medo não controlado, a relação com Deus, etc.
Para entender melhor essa condição nos atenhamos a dor. Dor física é aquela causada por uma injúria a um tecido, uma queimadura é o melhor exemplo para isso. Dor pode afetar o social? Respondo com uma situação cotidiana: e quando um avô quer levar o neto para brincar, um cachorro para passear, e não consegue pois sente muita dor?
E ainda, pode afetar o psicológico? Experimente uma dor de dente que não o deixa dormir e ir trabalhar no outro dia. E para finalizar, o espiritual pode ser abalado e piorar a dor de um paciente que não está completamente em comunhão com suas crenças sejam elas intrínsecas ou religiosas.
O paliativista é o mestre de obras de um processo complexo de construção de um processo chamado de finitude, mas como em toda e qualquer área deve ser introduzido precocemente ao paciente, para que se crie um vínculo médico-paciente. O que acontece muito atualmente é que os cuidados paliativos só são introduzidos na terminalidade da doença, quando o médico que o tratou a “vida inteira” vê seu arsenal terapêutico à míngua. Agora você vai morrer com outro médico que você nunca viu, numa unidade de terapia que nunca frequentou, a sensação de abandono nessa fase é muito comum.
Saber controlar sintomas é o que o paliativista faz de melhor, mas não é só isso, tem de ser um mestre na comunicação de más notícias. Criar um vínculo inquebrável com um paciente que deve fazer tanto em tão pouco tempo( às vezes) é outra de suas habilidades. Ele entende de situações corriqueiras como estratégias de como levantar melhor, de como se adaptar às atividades que antes eram normais e que agora são um desafio. Usa efeito adverso de medicações para conforto de sintomas. Sabe manejar medicações para dor como ninguém. Enfim é o que mais se aproxima de completude dentro da medicina.
Vou contar um segredo: o paliativista pode ser médico, enfermeiro, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, assistente social. Pode ser o cuidador, pode ser o vizinho, pode ser o amigo, a namorada e até um irmão de Igreja.
Mas o que tem a ver Pelé com isso tudo? Acompanhamos seus momentos finais e vimos cenas prazerosas simples como jogar uma bola, pedalar uma bicicleta, ser acariciado por netos, fazer uma vídeo chamada. Ele sofreu? Essa resposta não saberemos, mas podemos dizer com certeza com poucas imagens da sua finitude, que fez o que nós gostaríamos: morrer ao lado de quem amamos e não apenas num quarto frígido de hospital.
Quero mesmo que quando Deus me chamar que tenha os meus mais queridos do meu lado e um paliativista para eu surfar na onda dele.

A presença dos filhos de Pelé foi considerada um fator importante dos dias que antecederam a morte do rei do futebol
  • Rafael Perdomo (Médico oncologista, diretor clínico do Hospital de Amor, presidente da Associação Paulista de Médiocos – regional de Jales)

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